DO EFEITO AO FEITO: MEMÓRIA MADALENA (Thomas Ferrari Ballis)
O presente
texto tem como objetivo apresentar algumas reflexões acerca da memória.
Ilustrarei estas reflexões com a memória involuntária tratada por Marcel Proust
em “Em Busca do Tempo Perdido”. Mais
especificamente na passagem da “madalena”, narrada no primeiro volume da obra,
intitulado “No Caminho de Swann”.
Visitar e
revisitar os textos freudianos foram de suma importância para o desenvolvimento
do presente texto. Do universo teórico freudiano, o tema da memória foi o que
invadiu com mais força o espaço do brincar reflexivo deste que agora escreve.
Algumas experiências pessoais, outras testemunhadas na sala de análise também
contribuíram para a escolha do tema. Algumas delas encontraram ancoragem na
teoria freudiana, outras ganharam certa luminosidade nas madalenas de Marcel Proust.
A famosa
passagem da “madalena” mostra todo o
primor literário de Proust. Consagrou-se como uma das mais belas e marcantes do
primeiro volume de sua obra. O fato dos psicanalistas frequentemente se
utilizarem dela para suas reflexões só revela a sua força enquanto exemplar de
expressão das produções humanas.
No final do
primeiro capítulo de “No caminho de Swann”,
o narrador prova uma madalena
embebida em uma xícara de chá. O bolinho amanteigado, que lhe fora oferecido
pela mãe num dia de inverno, vem romper com “um
dia tristonho com a perspectiva de um amanhã sombrio” (p.64). O clima
belamente expresso pelo “drama de me
deitar”, que compilava tédio, angustia, desamparo, e uma enorme dificuldade
de se distanciar da mãe, dá lugar a uma felicidade extrema que lhe invade a
boca, um sentimento oceânico, uma alegria poderosa mesmo sem o conhecimento da
sua causa: “estremeci, atento ao que se
passava de extraordinário em mim. Um prazer delicioso me invadira, isolado, sem
a noção de sua causa. Ele imediatamente me tornou as vicissitudes da vida
indiferentes; seus desastres, inofensivos; sua brevidade, ilusória, do mesmo
modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou melhor essa
essência não estava em mim, ela era eu. Cessei de me sentir medíocre,
contingente, mortal. De onde poderia ter vindo esta poderosa alegria?”(p.55).
Na passagem
da “madalena”, o narrador distingue
dois tipos de memória. A memória voluntária, ou da inteligência, e a memória
involuntária. Descreve a memória voluntária como a tentativa de lembrarmos
intencionalmente do passado. Estabelece as limitações deste tipo de memória
demonstrando que, através dela não se conseguiu resgatar nada mais que uma
espécie de “fragmento luminoso, recortado
em meio a trevas indistintas”(p.54) de Combray, lugarejo de sua infância,
próximo a Chartres. Que através dessa memória, o tal lugarejo consistia “apenas de dois andares ligados por uma
escada estreita, e como se fossem sempre sete horas da noite” (p.54). Como
se todo o resto de suas lembranças de Combray estivessem
mortas.
Apresenta a
memória involuntária, ligada aos órgãos de sentido da natureza humana, como
marcas impressas no ser ao longo de sua história. Estabelece que ela se dá fora
dos domínios e alcance da consciência, a revelia da vontade, e que depende de
um encontro ao acaso com uma sensação despertada por algum objeto material, do
qual sequer suspeitamos: “mas quando nada
subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição
das coisas, solitários, mais frágeis mas mais vivos, mais imateriais, mais
persistentes, mais fieis, o odor e o sabor restam ainda por muito tempo, como
almas a recordar. A aguardar, a esperar, sobre a ruína de todo o resto, a
carregar sem vergar, sobre a sua gotinha quase impalpável, o edifício imenso da
lembrança” (p.56).
É através
da memória involuntária, da sensação despertada pela madalena, que o narrador nos mostra sua heroica aventura ao reencontro
de algo desperto por uma sensação em estado puro, ainda sem significação: “Bebo um segundo gole no qual nada encontro
a mais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É
tempo de parar, a virtude da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que
procuro não está nela, mas em mim. Ela a despertou, mas não a conhece, e só
pode repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho
que não sei interpretar e que quero ao menos lhe pedir de novo e reencontrar
intacto logo em seguida, à minha disposição, para um esclarecimento decisivo.
Pouso a xícara e me volto para meu espírito. Cabe a ele encontrar a verdade.
Mas como? É grave a incerteza todas as vezes que o espírito se sente
ultrapassado por si mesmo; quando aquele que procura é ao mesmo tempo a região
obscura onde deve procurar e onde toda a sua bagagem não lhe servirá para nada.
Procurar? não apenas: criar. Ele está diante de alguma coisa que ainda não
existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua luz. E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse
estado desconhecido, que não me apresentava nenhuma prova lógica da sua
felicidade, e sim a evidência da sua realidade, ante a qual as outras
desapareciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao
momento em que tomei a primeira colher de chá. Reencontro o mesmo estado, sem
um esclarecimento novo. Peço a meu espírito um esforço a mais, que me traga
outra vez a sensação que escapa. E para que nada quebre o impulso com que
ele vai tentar recuperá-la, afasto todo obstáculo, toda ideia alheia, protejo
meus ouvidos e minha atenção dos ruídos do quarto ao lado. Mas ao sentir que
meu espírito se cansa sem conseguir, eu o forço no sentido contrário: a aceitar
a distração que lhe negava, a pensar noutra coisa, a se refazer antes de uma
tentativa suprema. E uma segunda vez cavo um vazio diante dele, reponho na sua
frente o sabor ainda recente daquela primeira colherada, e sinto estremecer em
mim alguma coisa que se desloca, gostaria de subir, alguma coisa que teria se
soltado a uma grande profundidade; não sei o que é, mas ela sobe lentamente;
sinto a resistência e escuto o rumor das distâncias atravessadas. Por certo o
que palpita assim no fundo de mim deve ser a imagem, a lembrança visual que,
ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a mim. Mas ela se debate
demasiado longe, de modo demasiado confuso; mal percebo o reflexo neutro onde
se confunde o inalcançável turbilhão de cores misturadas; mas não posso
distinguir a forma, pedir-lhe, como ao único intérprete possível, que me
traduza o testemunho de seu contemporâneo, do seu inseparável companheiro, o
sabor, pedir-lhe que me ensine de qual circunstância particular, de qual época
do passado se trata. Chegará à superfície da minha consciência clara essa
lembrança, o instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão
longe solicitar, emocionar, levantar no mais fundo de mim? Não sei. Agora não
sinto mais nada, ela parou, recaiu talvez; quem sabe se não reemergirá nunca
mais da sua noite? Dez vezes preciso recomeçar, me debruçar rumo a ela. E todas
as vezes a covardia, que nos desvia de toda tarefa difícil e de toda obra
importante, me aconselhou a deixar isso de lado, a beber meu chá pensando
simplesmente nos meus aborrecimentos de hoje e nos meus desejos de amanhã, que
se deixam ruminar sem custo” (p. 55-56).
E a madalena, enfim, reaviva o lugarejo de
sua infância de uma forma que ele nunca desfrutara antes. “E de repente a lembrança me surgiu. Aquele gosto era o do pedacinho de
madalena que nas manhãs de domingo em Combray (...), quando ia lhe dar bom-dia
no quarto, minha tia Léonie me oferecia depois de molhá-lo na sua infusão de
chá ou de tília. (...) E assim que reconheci o gosto do pedaço de madalena
molhado no chá que minha tia me dava (...), logo a velha casa cinza de frente
para a rua, onde estava o quarto dela, surgiu como um cenário de teatro e se
aplicou ao pequeno pavilhão dando no jardim, construído atrás para os meus pais
(...); e com a casa, a cidade, desde a manhã até a noite e por todos os tempos,
a praça aonde me mandavam antes do almoço, as ruas onde ia comprar coisas, os
caminhos que pegávamos se o tempo estivesse bom. E como nesse jogo no qual os
japoneses se divertem, pondo numa bacia de porcelana cheia d’água pedacinhos de
papel até então indistintos que, ao serem mergulhados, logo se estiram, se
contorcem, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens
consistentes e reconhecíveis, e assim agora todas as flores do nosso jardim e as
do parque de monsieur Swann, e as ninfeias do rio Vivonne, e a boa gente da
aldeia e suas pequenas casas, e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo
aquilo que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de
chá” (p.56).
As questões
que a passagem da madalena nos coloca
instigam tanto pela complexidade com a qual a memória se apresenta quanto pela
probabilidade de que nós mesmos tenhamos experienciado algo semelhante em
nossas vidas, em grau de surpresa e sobressalto. Guardadas, claro, as devidas
ressalvas no que tange a felicidade. Uma identificação nos une a humanidade de
nosso narrador.
No primeiro
momento temos a narração de um clima emocional. Sentimos com o narrador o
aperto de seu campo perceptivo, o estreito olhar de uma consciência, como uma
pequena casa, cujas portas e janelas trancadas são reforçadas com tábuas de
madeira resistente, de onde se olha somente através das frestas. Restrições de
um psiquismo que transborda em angustia. As horas, os dias sombrios, a escuridão
da noite como metáforas da solidão e do abandono. Por fim, algo que nosso
narrador nomeia hábito, revelando a maquinal repetição deste clima emocional. “O hábito! Arrumadeira hábil mas bastante
morosa e que principia por deixar sofrer nosso espírito durante semanas numa
instalação provisória; mas que apesar de tudo, a gente se sente bem feliz ao
encontrá-la, pois sem o hábito e reduzido a seus próprios meios, seria nosso
espírito impotente para tornar habitável qualquer aposento” (p.19). É assim
que nosso narrador descreve o hábito, antes mesmo da passagem da madalena. O que devemos acrescentar é
que há um todo harmônico na narração. Sombrios se revelam os dias e as noites,
um relógio que só vive de sete horas, um drama que não vive sem a hora de
deitar, angustia e desamparo que não vivem sem narrador. Representantes e
afetos especialmente selecionados que se harmonizam e se fusionam em uma
gestalt, esteticamente em ordem e solidamente integrada. Representantes
bifacies que dizem de narrador e seu mundo. Compõe também a paisagem seu
escritor.
Diante do
quadro descrito podemos avançar um pouco e nos determos na seguinte pergunta: o
que vem a provocar então a madalena? Acompanhando suas próprias palavras,
observamos que inicialmente o gosto da madalena
o faz estremecer, que a
experiência o coloca em um estado de incerteza
por ter seu espírito como que
ultrapassado por si mesmo. A madalena aqui, subvertendo certa interpretação
de passagens bíblicas, é também a pedra lançada por um infante num lago
tranquilo. Esta pedra vai se chocar com algo no fundo do lago, enquanto sua
superfície lhe responderá de uma forma menos tranquila, em pequenas ondas que
se afugentam circulares, até que se encaixe novamente em seu nome. Lago
tranquilo. E depois que escrevo a metáfora do lago, que a pedra me volta com
alguma coisa, a lembrar-me da “travessia
de um rio bravo de mãos dadas com os pacientes”, referida por uma psicanalista há alguns anos. Rio bravo, lago
tranquilo. Mas voltando a madalena,
sabe-se que o que se passa com nosso narrador é algo da ordem desta analogia, o
que gostaríamos de saber é o que se rompe com a madalena? O que se quebra? O que é que lhe ultrapassa e se choca
com algo nas profundezas de seu ser? Em primeiro lugar, creio que a madalena rompe uma tradição, uma
tradição subjetiva. Melhor, a madalena
é a traição de uma tradição subjetiva que até então se repetia. Lembremos que
nosso narrador quase recusa a oferta de sua mãe: “a princípio recusei, não sei por que, voltei atrás” (p.55). Em
outras palavras, o que ela faz é provocar uma ruptura na superfície
representacional, desfazendo a urdidura de um Eu. A metáfora do lago, seguida
de uma pitada de gracejo com seu nome, não é fortuita. Pois se estamos
apontando um choque que estremece uma superfície representacional, estamos
falando de um choque com a realidade. Consequentemente o que se observa é uma
identidade em crise. O narrador nos diz isso claramente ao tentar nomear a
experiência: “a evidência da sua
realidade, ante a qual as outras desapareciam” (p.56). O mais importante
para os nossos propósitos aqui é que a lembrança que se reaviva posteriormente
é o fruto desta experiência, causada por uma sensação.
Seguindo o
desenrolar da narrativa, nosso narrador está em êxtase - uma extrema felicidade
lhe invadira a boca. Mas, talvez, sejamos um pouco ingênuos ao pensarmos que
ele está satisfeito. A madalena, na
analogia freudiana do bloco mágico, é um estilete do acaso, mas um acaso que
revela seu grau de intensidade à medida que encontra eco e refaz um caminho abandonado
a inscrições primeiras, a marcas esquecidas. Eu a vejo análoga ao que Freud
nomeou resto diurno em seu livro “A Interpretação dos Sonhos”, mas
posteriormente voltaremos a esta observação. A princípio, um encontro fortuito
no presente que anima uma marca esquecida do passado, suspendendo nosso
narrador no que chamamos tempo. Esta sensação de plenitude que torna as
vicissitudes e os desastres da vida inofensivos, que cessa o sentimento de
mediocridade, contingencia e mortalidade, nem por isso são suficientes para que
o narrador simplesmente goze deste momento. O que chamarei de efeito madalena
ainda está no campo das sensações; lembre-se que nosso narrador está em meio a
uma crise de identidade\realidade e, para saná-la, ele precisará unificar,
combinar (Freud, 1919 p.283). Expressa esta tendência humana compulsiva ao
perguntar-se: “De onde poderia ter vindo
esta poderosa alegria? (...) De onde vinha ela? O que significava? Onde
apreendê-la?” (p.55).
Chamo aventura a busca de nosso narrador, pois
vejo nela a capacidade e esforço da criatura humana de utilizar todos os
recursos de que dispõe para dar conta de uma experiência que lhe escapa,
atravessa e desnorteia. Com suas estruturas vivenciais em crise, nosso narrador
tem como únicas pistas um sabor e um prazer delicioso. Mas um novo narrador se posiciona agora,
vitalizado neste tempo pós madalena,
um novo Eu buscando aconchegar-se a uma nova realidade. A princípio, a
tentativa de um segundo gole nada diz. Há sabor neste novo Eu encarnado, mas ele
quer sentido, história e narrativa, uma síntese criativa entre passado e
presente. Advém tal sabor de um narrador infante, o que ainda não fala, marcado
somente pelos rastros das sensações. Memorável momento o de sua tentativa de
retroceder pelo pensamento “a primeira
colher de chá” (p.56), uma bela alegoria de um Freud obsessivo, ansiando as
origens do psiquismo, perpassando a filogênese, a mitologia e a catástrofe
glacial, em busca da primeira colher de chá da humanidade. Visitando e
revisitando o humano e sua história através do pensamento, este consolo
civilizatório pós-desilusão amorosa com o paraíso, de onde advém alguma ideia
acerca do que é felicidade. Mas, voltemos ao nosso narrador, agora um Eu
pensante, tentando eliminar todos os obstáculos, ruídos e ideias alheias de sua
mente, determinação hercúlea de forçar uma espécie de sonho em vigília, para
que surja novamente uma sensação que lhe escapa. Ou, no sentido contrário,
deixando que suas distrações e pensamentos lhe guiem. Tentativas em vão. No
entanto, palpita-lhe algo que nomeia imagem, uma lembrança visual que ele
associa ao sabor da madalena,
conjecturando esta testemunha contemporânea com algo proveniente de um passado.
Uma narrativa truncada se desenrola; vemos agora um narrador trapeiro, colhendo
fragmentos, restos, reminiscências, recomeçando inúmeras vezes a sua tarefa,
como se pudesse achar na luz da memória voluntária o que se evidenciou no
recôncavo escuro de seu espírito. Fraqueja. Sente-se vencido pela árdua tarefa
de procurar na luz o que se perdeu no escuro. Mas de chofre, a lembrança lhe
surge, e nosso narrador tem seu glorioso milésimo de segundo de um Irineu
Funes, o memorioso de Borges.
A passagem
da madalena é permeada pela
investigação da origem das lembranças. Nosso narrador inicia sua investigação
estabelecendo uma analogia entre uma crença céltica e a memória involuntária.
Nelas, a possibilidade de acesso a determinadas lembranças do passado só se dão
ao acaso de um encontro fortuito com um objeto material, ressaltando a sensação
despertada pelo mesmo. Após a sensação despertada pela madalena ele compreende que a verdade não está nela, mas nele
mesmo; no entanto supõe mais um elemento que fermenta a complexidade da origem
de uma lembrança: “procurar? Não apenas: criar
(grifo meu)” (p.56); “ele está diante
de alguma coisa que ainda não existe (grifo meu) e que só ele pode tornar real” (p.56). E
neste momento nos perguntamos: Afinal, o narrador vai resgatar uma lembrança
que já existe ou vai inventar uma lembrança?
O narrador nos da uma aula sobre a transferência, ao enfatizar que o
sabor da madalena é o testemunho
contemporâneo de uma época do passado; “um
estante antigo que a atração de um estante idêntico veio de tão longe
solicitar, emocionar, levantar no mais fundo de mim?” (p.56). Para
completar a complexidade do efeito madalena
e a origem da lembrança, nosso narrador termina de forma poética o primeiro
capítulo de sua obra dizendo que “toda
Combray e seus arredores, tudo aquilo que toma forma e solidez, saiu, cidade e
jardins, da minha xícara de chá (grifo meu)” (p.56).
Será
somente uma forma poética de concluir sua aventura aos recôncavos da mente? Ou
podemos pensar na importância dos elementos que surgiram ao acaso na paisagem
de nosso narrador, como atores indispensáveis da cópula que parteja esta
lembrança? A pergunta que se impõe neste momento é a mesma de Santo Agostinho
no capítulo intitulado “O Palácio da
Memória de suas Confissões”: “Ora
esta potencia é própria do meu espírito e pertence a minha natureza. Não chego,
porém, a apreender todo o meu ser. Será porque o espírito é demasiado estreito
para se conter a si mesmo? Então onde está o que de si mesmo não encerra?
Estará fora e não dentro dele? Mas como é que não o contém?” (p.146).
Diante da complexidade que o narrador nos impõe, experimente caro leitor,
imaginar um diálogo entre narrador, a madalena,
o sabor e a xícara, a respeito do direito a maternidade biográfica da
lembrança. Imaginemos:
O Narrador: Mas o menor sentido não se alcança
no presente encontro, para além do absurdo expresso da incontestável loucura! É
inexorável meus senhores que esta lembrança revela a mim, a minha infância, a
minha vida! Há realmente alguma dúvida quanto a isso? Alguém tem alguma dúvida?
Mas qual é a pergunta?
A Xícara: Argumentos
cândidos meu senhor. Esta senhora xícara de cintilante nobreza, ainda invicta
das lascas do tempo, lhe acompanha desde a infância em Combray, virtude da
senhora sua mãe. Afinal, não se descartaria em uma mudança uma porcelana com
tal vigor e pujança. E a propósito, não se olvides meu caro senhor, que a
tintas fortes escrevestes que tudo saiu das minhas entranhas, mesmo a despeito
da invasão de uma desonrada e desmedida madalena!
A Madalena: Admirável como me estimas Senhora
Xícara, reconheço sutilmente nas suas palavras meu lugar cativo nos salões da
burguesia, nas mesmas línguas que experimentam a virtude. Pois saibas que o
vício e a virtude se cobiçam através de uma vidraça, separando-se ínfimos em
sua transparência. A sua língua meu narrador, cospe lembranças ao deleitar-se
comigo, no calor da alcova de seu palato!
O Sabor:
Humildemo-nos um pouco meus senhores, que o pensamento é mais preciso no
sereno! E as palavras, vós apercebereis um dia, mais escondem do que mostram!
Todavia, se quereis mesmo as palavras meus senhores, os andaimes humanos da
lembrança, as palavras pra flor ou para os jardins da pele, que nos encontremos
mais meus senhores! Encontremo-nos também com a pele, nos encontremos com o
cheiro, companheiros leais das mais primevas sensações. Aquietemos mais a razão
e o sentido da vida, que a contextura da lembrança está na graça do encontro!
Ao
referir-me a madalena como um resto
diurno, encontro uma testemunha em Valter Benjamin: “Toda interpretação sintética de Proust deve partir necessariamente do
sonho. Portas imperceptíveis a ele conduzem” (p.39). Em seu livro “A Interpretação dos Sonhos”, Freud
afirma que “em todo o sonho, é possível
encontrar um ponto de contato com as experiências do dia anterior” (p.175).
Freud é paradoxal quanto à importância do resto diurno, “às vezes ele aparece na teoria como um elemento inócuo da experiência
de vigília, capturado de modo contingente pelo processo de elaboração onírica
(...). Outras vezes parece ser a própria natureza do resto diurno o agente provocador
do sonho” (Ferraz, 2012 p.32). Mais adiante, ainda no capitulo V de “A Interpretação dos Sonhos”, Freud
parece estabelecer uma síntese teórica acerca do resto diurno: “O enigma de por que os sonhos se interessam
apenas por fragmentos sem valor da vida de vigília parece haver perdido todo o
seu significado; tampouco é possível continuar a sustentar que a vida de
vigília não é levada adiante dos sonhos e que estes são, portanto, uma
atividade psíquica desperdiçada num material descabido. O inverso é verdadeiro:
nossos pensamentos oníricos são dominados pelo mesmo material que nos ocupou
durante o dia e só nos damos o trabalho de sonhar com as coisas que nos deram
motivo para reflexão durante o dia.” (p.185). O sabor da madalena é uma percepção emocionalmente
significativa, um traço da realidade que guarda em si um aspecto enigmático,
que faz do encontro uma solicitação de processamento psíquico. Sua evidencia é
tão intensa que ela transforma o dia do
sonho em um dia sonhado. O efeito
madalena culmina no que Freud nomeou na famosa carta 52 de “rearranjo” ou “retranscrição” que a memória sofre de tempos em tempos.
“Pra falar a verdade, eu poderia ter respondido
a quem me perguntasse que Combray compreendia ainda outras coisas e existia
noutras horas. Mas como o que então recordasse me seria fornecido pela memória
voluntária, pela memória da inteligência e como as informações que ela dá sobre
o passado não conservam nada dele, eu nunca teria tido interesse nesse resto de
Combray. Tudo aquilo estava na realidade morto para mim” (p.54).
Este trecho nos mostra uma Combray mais além da representação, mas indiferente
ao nosso narrador, por não refleti-lo. Após a ruptura representacional, o sabor
da madalena serve ao nosso narrador
como suporte transferencial para um mergulho que desemboca no pretérito, e com
esta experiência “modifica-se o solo da
memória e o passado passa a ter sido outro. Como consequência, e em pequena
medida, o presente, ou seja, o futuro de um novo passado, muda e também passa a
ter sido sempre aquele que se criou” (Herrmann, 2008 p. 50). A rigor, nada
nos garante que esta lembrança existia ou estava escondida em algum lugar da
mente de nosso narrador, mas curiosamente podemos afirmar o contrário. O feito madalena
é uma lembrança viva em toda sua forma e solidez, que amplia o universo
dos possíveis ao ser incorporada à história de nosso narrador. Altera e amplia
o solo da memória com novas representações, novos ingredientes pra palavra
narrar o mundo.
Minha
excursão acerca da madalena de Marcel
Proust obviamente aponta para a sala de análise, onde paciente e analista se
encontram para uma prática da palavra falada. Mas uma palavra viva, esmiuçada
em seu molejo etimológico, cultivada na sua emoção. Pois a sala de análise
desperta a palavra do sono cotidiano, desamarrando sentidos outros, provocando
estranhos encontros e desencontros, produzindo restos diurnos que serão
dormidos e sonhados. Pois nesta perspectiva, o sonho é concebido tanto como
expressão psíquica de sentido, como uma função de inscrição de novas
representações (Ferraz, 2012 p.33) - que amadurecem e expandem a mente.
Este
trabalho privilegia a alteridade e o real do encontro, aponta para o que ele
pode ter de inédito, de inaugural, de não repetitivo. Pois como escreveu Marcel
Proust: “Talvez a imobilidade das coisas
ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas
mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas” (p.16).
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THOMAS FERRARI BALLIS é psicanalista.
Email: thomferrari@yahoo.com.br
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