ENSAIO SOBRE O FUTURO DE UM PRETÉRITO (Marcos InHauser Soriano)
“Há
sempre um momento na infância em que a porta se abre e deixa entrar o futuro.”
(GRAHAM GREENE)
Lá vai a
menina a correr pelo terreno baldio, loirinha, loirinha, no auge dos seus cinco
anos de idade. O terreno, cheio de mato, é um pedaço de interior no meio da
metrópole. Existem vários pedaços de interior dentro da cidade grande,
esquecidos, transformados em lixões - restos de tudo aquilo que as pessoas
descartam e jogam fora. A menina sente-se rainha entre ratos, baratas e outros
bichos, entre os poucos amigos que correm com ela.
Brincam com
tudo que acham pela frente, brincam com o que os outros descartaram de suas
vidas. E correm. Correm livres pelo espaço do terreno perdido no meio da metrópole.
Pequenos pezinhos descalços a correr pelo lixo. A menina, com seu vestido
esgarçado, corre na frente. Mas corre para onde? Para o futuro que corre...
Talvez será
bailarina, talvez será cortesã. A curuminha, de cabelo curtinho, loirinho,
loirinho – o cabelo deve ser mantido curto para que não se faça um terreno para
os piolhos -, corre para ela que ainda há de se fazer outra.
Talvez será
advogada, talvez será indigente, essa gente sem nome que povoa a cidade grande,
um imenso terreno baldio. Quem sabe o que será?
Talvez será
uma Gisele, de marido bonitão e elegante, com filhotes bonitos. Talvez será uma
sei-lá-o-que, sem dentes na boca, jogada no espaço vazio da metrópole – espaço
destinado aos sei-lá-o-que.
Talvez
encontrar-se-á, lá na frente, com os pais. Será, talvez, a mãe resignada e
amorosa, à espera do pai meio-trabalhador, que chegando bêbado em casa, aos
socos e pontapés, busca alguém-qualquer-um para descontar a frustração
impensada. Repetição. Privação e delinquência.
Talvez será
Elizabeth, que nem sabe quem é, rainha de um reino próprio que não se sabe qual
vai ser. Talvez será uma indesejada qualquer. Como saber o que será?
Mas a
menina não pensa em nada disso. Apenas corre pelo lixão, a brincar com qualquer
coisa... Corre, corre, corre... Corre para não pensar no que há de se encontrar
mais tarde em casa, corre para não saber o que será.
Uma das
irmãs morreu de algo que não se sabe. O que é a morte para a menina? Ela não
sabe. A morte é um não saber nunca mais. A morte é o não será. A loirinha não
pensa na morte, corre, corre, corre.
Corre
também dela mesma de ontem, corre dela que há de se fazer amanhã. Mas como
saber o que será? Então corre, corre, corre... Quando não corre, sonha. Um
sonhar sobre o que ainda pode haver, sobre o que será.
Futuro do
Pretérito, tempo verbal que enuncia um fato que poderia ter ocorrido
posteriormente a um determinado fato passado. Diz de um futuro em relação a
outro, já ocorrido. Hipótese, incerteza, irrealidade, o condicional do que não
foi. Tempo verbal das possibilidades – se tratando de pensamentos, tudo é
possível, “seria possível”.
Futuro do
Pretérito, tempo da lógica do inconsciente. O Inconsciente, de certa maneira, é
Futuro do Pretérito – inconscientes de tantas relações infinitamente possíveis.
“O que foi? Ficou tão quietinha...” –
interpola o analista, interrompendo o devanear da mulher, que no susto, retorna
ao tempo da sessão.
Mulher
crescida, conseguiu vencer na vida. Bom emprego, bom salário. Conforto para a
família, coisa que para ela é muito importante. Geralmente sente-se feliz. Às
vezes é acometida de algo-assim-não-sei-o-que que traz agonia. Indefinida a
angústia. Ela não sabe. Um momento de percepção de si, fugaz, onde falta uma
parte dela.
“Estava tomada por minhas memórias, aquelas
que você sabe...” – voz com tom de profundo respeito por um diário inscrito
dentro do coração. “Eu gostava de
rodopiar com meu vestido, gostava de vê-lo abrir-se como saia de bailarina. Eu
sempre gostei de dançar, apesar de nunca ter dançado”.
“Drible?!” – tenta a voz que vem da
poltrona.
“Ah... Acertei bem as passadas no baile da
vida!!! Mas algo sempre falta... Não sou a dançarina que gostaria de ter
sido...” – tom saudoso, emergindo do devaneio ao qual estava imersa.
“Foi?!” – soando ambiguidade da poltrona.
Silêncio
respeitoso por aquele instante formado por ontem-agora-amanhã.
“Acho que corro demais. Talvez precise dar
mais atenção à minha vontade de dançar!!!” – conclui despretensiosamente.
Fico ali,
acompanhando uma possível construção outra, transportado, observando a menina
que corre, corre, corre. Há muitos interiores escondidos na cidade grande.
Às vezes, a
Psicanálise se aproxima tanto da Literatura, que permite certa ludicidade com
as palavras – uma cura possível dentre tantas outras que poderiam ter sido.
MARCOS INHAUSER SORIANO é psicanalista.
E-mail: misoriano@terra.com.br
Blog: http://umtranseunte.blogspot.com.br
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